F-1000 Projeto Antártica

O assunto de hoje foi uma sugestão do amigo Paul Willian Gregson que lançou recentemente seu novo livro: Universo Maverick. Você adquirir clicando aqui.
O Paul vem há muito tempo reunindo informações sobre essa F-1000 e enviou o material pra que eu pudesse dar continuidade.
Achei o assunto incrível, eu nem imaginava uma história dessa e é por isso que estamos aqui.
 
Bom, vamos contextualizar o assunto. No final de 1982 teve início o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) com o objetivo de fazer o reconhecimento hidrográfico, oceanográfico e meteorológico da área onde seria instalada a futura Estação Antártica Comandante Ferraz, no noroeste do continente. Foi um projeto enorme feito pelos brasileiros e envolveu vários setores do governo.
A Antártica passou a estar “próxima” do Brasil e a Ford em acordo com a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, preparou uma F-1000 para servir de transporte de pessoal, equipamentos de pesquisa e materiais em geral. Seria também uma forma da Ford testar seu equipamento e engenharia em situações extremas.
 





O Paul contou que foi o Ricardo Muneratto, líder deste projeto na Ford, que enviou documentos e informações sobre a F-1000.
 
Ótimo, vamos aos jornais:

O Globo 18.11.1987

Às 10h20 do dia 17 de novembro de 1987, o navio Barão de Teffé deixou o cais da Praça Mauá (RJ) iniciando a sua sexta expedição à Antártica.

Ele levava 95 pessoas e 1 Pick-up Ford F-1000, um trator e um hover-light.

O jornal fala das pesquisas, das pessoas envolvidas, mas vamos focar na viagem e na F-1000.

No dia 21/11, o navio chegaria ao porto de Rio Grande (RS) onde ficará atracado por 3 dias até sair em direção à estação Comandante Ferraz, na Antártica, com chegada prevista para o dia 3/12.

 

Correio Braziliense 3.12.1987

E aqui vemos a bruta F-1000 sendo carregada no navio Barão de Teffé.

Jornal do Comércio 19.11.1987

Olha, esse navio transportava muitas cargas especiais, mas a F-1000 é o centro da nossa pesquisa né?

A F-1000 foi desenvolvida para o “Projeto Antártica” e aproveitou as várias experiências adquiridas durante os testes de desenvolvimento da linha do Escort na Europa, em condições por vezes semelhantes as existentes no Polo Sul.

Ela possui:

Motor diesel de 4 cilindros e 83cv de potência (MWM 229-4);

Tração nas rodas traseiras com sistema antiderrapante “Twin-Drive” (bloqueio de diferencial);

Sistema de partida com um reservatório de combustível com mistura de querosene e diesel;

Os líquidos de refrigeração do motor, dos freios, da bateria e o sistema de lubrificação também receberam tratamentos especiais.

 

A equipe da Ford utilizou também seu Campo de Provas em Tatuí (SP) onde fez testes do equipamento na câmara fria que consegue atingir a temperatura de até -40oC.

 

A F-1000 Projeto Antártica em Tatuí ainda com a placa de testes. - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto

Diário do Paraná 22.11.1987

Este jornal completa o nome da cor: Vermelho Maçã. Diz também que esta F-1000 seria o primeiro veículo automotor da categoria a ser utilizado na estação Brasileira.

 


Correio de Notícias 23.11.1987

Aí está, o primeiro veículo nacional na Antártica. Ela foi criada dentro do Departamento de Engenharia de Caminhões.

 

Vemos mais detalhes de suas modificações:

Sistema de partida do motor – similar ao utilizados em motores à álcool, o reservatório recebeu uma mistura de óleo diesel e querosene além de uma resistência elétrica (vela)  montada na parte interna do coletor de admissão que, acionada manualmente pelo motorista o sistema liga, simultaneamente, a resistência  - que se torna incandescente – e injeta o combustível do reservatório. Ao ser pulverizado sobre a vela ocorre a queima da mistura, com partida imediata mesmo em temperaturas abaixo de 25 graus negativos.


Detalhe da F-1000 Projeto Antártica em Tatuí. - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto

Todo o sistema elétrico foi superdimensionado, recebendo um alternador de 12 volts e 40 A/H e duas baterias de 54 A/H.


Detalhe da F-1000 Projeto Antártica em Tatuí. - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto

Liquido de refrigeração do motor e do lavador do parabrisa foram ativados com etileno-glicol, elemento químico retardador do congelamento.

Os cuidados estenderam-se também aos fluídos de freios, solução da bateria e aos óleos e graxas do sistema de lubrificação.

Para assistência imediata, acompanhava o veículo, caixa de componentes como mangueiras, reles, lâmpadas, fusíveis, conjunto de rodas/pneus ferramentas e até um parabrisa.


O uso da F-1000 substituiria o Ski-doo, espécie de motocicleta para neve e do trenó puxado por um pequeno trator que eram os únicos veículos disponíveis na região.

Ela vai agilizar e facilitar o trabalho de apoio logístico, substituindo o esforço muscular pela versatilidade e capacidade de carga do veículo.

Será uma prova dura de resistência, pois as temperaturas oscilam entre 5 e 25 graus negativos de forma permanente e os caminhos são rudimentares cobertos por cascalho quase sempre encharcados pela neve e muitas vezes até congelados.

 

Este jornal deu uma visão abrangente da missão da F-1000 na Antártica. Em momento algum foi dito que haveria um representante da Ford para acompanhar ou fazer os eventuais reparos na caminhonete. Também não foi dito que o motorista teria recebido algum tipo de treinamento para a condução desse veículo nessas condições. Ou seja, a F-1000 estaria por conta própria lá no fim do mundo.

Podemos aguardar dois grandes desafios:  As baixas temperaturas e o terreno escorregadio.



Jornal do Comércio 1.12.1987

Por mais modificações que a caminhonete tenha sofrido, ainda era um veículo de linha de produção normal. É claro que não tinha a opção de comprar uma F-1000 na concessionária com o pacote Antártica, mas também não era um protótipo criado exclusivamente para essa missão.


Correio Braziliense 3.12.1987

As adversidades do clima e do terreno da Antártica, atraíram a Ford para o “Projeto Antártica".


Mais detalhes da F-1000:

Não conta com sistema de calefação interna. A justificativa de engenharia é que o ar quente dentro da cabine produziria choque térmico.

Apesar da novidade, este Pick-up não pode ter sua performance divulgada nos EUA. É que ele usa motorização diesel MWM, o que só ocorre no Brasil. Além disto, nos Estados Unidos este modelo já não é produzido há um bom número de anos.

 

Interessante a questão do isolamento interno, mas sobre a divulgação dos resultados de performance nos EUA, acredito que o “não pode ter...” significa mais que não traria interesse algum, pois é uma opção de motor que eles não têm, num veículo que já está fora de produção. Tanto é que a Ford não escondeu este assunto de ninguém.



O Globo 6.12.1987

No dia 6/12, o navio já teria chegado ao seu destino.

O jornal traz mais do contexto da história e apresenta também a F-1000.

Aqui é dito que ela foi cedida pela Ford em comodato (ao Programa Antártico Brasileiro, talvez...), pois tem interesse em saber como a tecnologia aplicada se comporta em um clima tão peculiar.

Helio Perini era o engenheiro responsável pelo Departamento de Engenharia de Caminhões, onde o Projeto Antártica nasceu. Ele dá mais detalhes:

A Marinha pediu que:

Tivesse guincho na dianteira e traseira;

Fosse na cor vermelha para destacar o veículo no ambiente;

Suporte para 1 tonelada de carga na carroceria e

Pneus próprios para lama e gelo.

 

É legal pesquisar assim, as informações vão aparecendo e fazendo cada vez mais sentido...

 

A própria experiência da Marinha nesses 5 anos de Proantar, ajudou a preparar a F-1000 da melhor forma para dar conta do serviço.


Agora veremos uma série de diversos jornais falando da mesma notícia, o que pode parecer repetitivo, mas na verdade isso mostra como o assunto foi notícia em diversos estados brasileiros, além de também de agregar valor à pesquisa.

Jornal de Guarulhos 2 e 3.1.1988 - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto


Correio Popular 4.1.1988 - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto

Diário de Pernambuco 17.1.1988 - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto


Super Auto 2.1988 - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto



O Carreteiro 3.1988 - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto

Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto



Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto


Ótimo, mas e na prática, como ela se comportou?


Jornal da Tarde 23.3.1988 - Acervo Paul W. Gregson / Ricardo Muneratto

Lemos que a F-1000 foi batizada como Punta Arenas e que os muito locais encharcados com cascalhos escorregadios tornaram a vida na nossa caminhonete um terror. Ela não conseguia passar por essas situações e atolava.

O Fuzileiro e mecânico da Marinha, Jorge Barbosa Sobrinho, disse que ela preenchia a todos os requisitos, mas fazia falta uma tração 4x4.

Lembrando que a tração 4x4 ficou disponível para a F-1000 apenas em 1994.

Ela era utilizada nos terrenos mais firmes e compactados. No passeio realizado para a matéria do jornal, eles saíram mas acabaram atolando em uma parte de terreno fofo e escorregadio. A Punta Arenas acelera e tem força, mas infelizmente não tracionava para conseguir sair. O motorista Jorge foi com jeitinho e sem ajuda, saiu do atoleiro. Para vencer essas regiões de atoleiro, ele precisava passar correndo e acelerar o máximo, forçando bastante a estrutura e o motor da F-1000, mas nesse ponto ela era imbatível com sua grande resistência. Imagina os solavancos que ela sofria...

O Jorge Sobrinho ainda diz: "A Punta Arenas tem muita estabilidade, é segura e me sinto seguro com ela. O aquecedor do tubo de admissão funciona bem e permite que a partida ocorra facilmente."

Era ele que dirigia a F-1000 e usava mais a 1ª e 2ª marcha.

Mas aí chegou correntes para conferir maior tração aos pneus da F-1000. Acontece que com o atrito das pedras, as correntes se partiram. Mostrando que o terreno é praticamente intransitável para um veículo de linha de produção.


Quando pensamos em Antártica, automaticamente imaginamos frio congelante e lugar isolado. A Ford trabalhou bastante para garantir o funcionamento da F-1000 nas mais duras condições climáticas e foi muito bem sucedida. Quanto ao tipo de terreno, não dava pra fazer muito... Era uma condição só encontrada lá e como testar isso? 
A Punta Arenas precisou utilizar sua poderosa estrutura para se lançar nos buracos, atoleiros, neve e gelo e conseguir passar. É, se faltava aderência, a F-1000 dava um jeito.


https://naftalina-retro.tumblr.com/

A Ford podia ter orgulho do desenvolvimento alcançado. Eles não criaram um veículo para andar no gelo, mas sim mostraram que o mesma F-1000 que andava em estradas de terra e asfalto não sucumbiu ao território Antártico.

Foi só um teste, mas a Ford aproveitou para mostrar que a F-1000 era mais do que o suficiente para ser utilizada no campo e trabalho pesado.


Manchete 23.4.1988

Aqui podemos ver melhor a placa amarela registrada em São Bernardo do Campo. 

A Amazônia representa uma localidade para uso extremo de qualquer veículo, mas como a F-1000 se deu bem na Antártica, o que iria temer?

De fato, a Ford é considerada a melhor fabricante de caminhonetes do mundo. A F-1000 brasileira deixou de ser produzida em 1999, mas até hoje é uma das caminhonetes preferidas para o trabalho pesado.


A princípio o Paul gostaria de encontrar essa caminhonete. Ele apurou que após ter voltado da Antártica, ela serviu para o trabalho no autódromo de Interlagos por um tempo, sendo depois doada para caridade. Quem sabe um dia ela aparece...


Bom, encerramos por aqui. Eu gostaria muito que o Paul contasse essa história, mas até que fizemos uma bela pesquisa juntos. 
Inclusive, esse assunto é, provavelmente inédito na internet e isso me deixa feliz, pois esse blog é justamente para resgatar histórias interessantes e torná-las conhecidas e/ou mais conhecidas.

Obrigado pela leitura, até a próxima!

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